sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sobre as virtudes da oração

«O contínuo exercício da oração fortalece o vigor do nosso intelecto e torna os receptáculos da alma muito mais capazes para as comunicações dos Deuses. É igualmente a chave divina, que abre aos homens a penetralia dos Deuses; acostuma-nos aos esplêndidos rios de luz celestial; em pouco tempo aperfeiçoa os nossos recantos mais íntimos e dispõe-nos para o inefável abraço e contacto dos Deuses; e não desiste até que nos eleve ao cume de todos. Também eleva gradual e silenciosamente as maneiras da nossa alma, despojando-a de tudo o que é estranho à natureza divina, e reveste-nos com as perfeições dos Deuses. Além disso, produz uma comunhão e amizade indissolúvel com a Divindade, nutre um amor divino e inflama a parte divina da alma. Tudo o que é de natureza oposta e contrária na alma, a oração expia e purifica; expulsa tudo o que é propenso à geração e mal retém qualquer resíduo da mortalidade no seu espírito etéreo e esplêndido; aperfeiçoa uma boa esperança e fé em relação à recepção da luz divina; e, numa palavra, torna aqueles por quem é empregado os familiares e domésticos dos Deuses.»

«Sobre os Mistérios» («De Mysteriis»), pelo neo-platónico assírio Jâmblico (245 - 325), aqui traduzido pelo inglês Thomas Taylor (1758 - 1835).
 
Fonte: https://gladio.blogspot.com/2024/04/sobre-as-virtudes-da-oracao.html

Nota: de vez em quando Caturo pública algo útil e notável.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Edir quer liberar homofobia

O bispo Edir Macedo, dono da Record e da Igreja Universal do Reino de Deus, apresentou um recurso contra a decisão da Justiça Federal de remover um vídeo no qual ele faz declarações homofóbicas relacionando a sexualidade com a criminalidade.

No vídeo, veiculado na véspera do Natal de 2022, Macedo afirma que “ninguém nasce ladrão, ninguém nasce bandido, ninguém nasce homossexual, lésbica… ninguém nasce mau. Todo mundo nasce perfeito com a sua inocência, porém o mundo faz das pessoas aquilo que elas são quando elas aderem ao mundo”.

Em novembro de 2023, a Justiça Federal determinou que a Record fizesse a retirada imediata, de todos os meios de comunicação, de programa veiculado. A decisão foi tomada em uma ação civil pública protocolada por entidades que atuam na defesa dos direitos da população LGBT+ contra ofensivas proferidas pelo dono da emissora, Edir Macedo.

Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/edir-macedo-quer-reverter-veto-a-exibicao-de-video-homofobico-ninguem-nasce-gay/

Adendo: a comunidade evangélica deve gostar de passar vergonha em público.
Foi divulgado um vídeo onde, em um evento na Suinobrás, foi concedido uma unção no tornozelo ao Inominável.
Reportagem: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/video-evangelicos-oram-e-passam-uncao-no-local-onde-bolsonaro-pora-tornozeleira/

Houston, temos um problema

No Patheos, na seção Catholic, na coluna A Little Bit of Nothing, Henry Karlson mostra uma ideia perturbadora.

Citando:

“A Vitória Do Amor Na Cruz”

Isso é muito perturbador. Onde pode ser visto o amor em uma imagem de alguém pregado na cruz?
Segundo a doutrina cristã, Yahweh enviou o próprio filho para nos salvar. Essa seria a “demonstração de amor”. Como eu devo ter escrito em algum lugar, um Deus que envia o próprio filho para ser sacrificado, imagine o que faria contra nós?

Sigamos. Citando:

“O Deus-homem , Jesus Cristo, experimentou um ódio assassino contra si mesmo durante toda a sua vida (como pode ser visto pela maneira como Herodes queria que o menino Jesus fosse morto).”

Na doutrina cristã, Jesus é Deus, mas essa questão sobre a pessoa de Jesus foi motivo de controvérsias, polêmicas e guerras entre os cristãos. A lenda da Matança dos Inocentes por Herodes não tem sustentação histórica.

Citando:

“Jesus amou o mundo e todos os que nele vivem, mesmo que aqueles que nele habitam, especialmente os que estão presos às estruturas sistêmicas e sistemáticas do pecado , tenham procurado extingui-lo.”

Não é bem assim. Vários trechos dos Evangelhos mostra Jesus demonstrando desprezo pelos fariseus e agiu com violência contra os mercadores. Um trecho diz claramente que ele veio trazer a espada, não a paz e que causaria guerra entre as pessoas.

Citando:

“Jesus voluntariamente assumiu todo o sofrimento, toda a dor, todo o mal que o pecado poderia e iria causar-lhe.”

Não é bem assim. A missão de Jesus, como Cristo, foi definida pelos Profetas. Jesus estava predestinado ao sacrifício. Em uma cena descrita nos Evangelhos, talvez em um momento de fraqueza ou instinto de sobrevivência, Jesus peticionou ao seu “Pai” que o livrasse desse destino.

Citando:

“Ele veio ao mundo para mostrar o amor de Deus, para revelar o caminho do amor, para mostrar que tal amor é maior que o poder do pecado.”

Considerando a história do Cristianismo, tanta violência, ódio e guerra, cabe aqui uma frase dita por LaVey - o único cristão morreu na cruz.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

O cálice e a adaga

Recapitulando.

Patheos foi adquirido por um grupo associado ao NRA, ao conservadorismo e ao fundamentalismo cristão.
Muitos colunistas pagãos e ateus saíram do Patheos. Os ateus criaram o OnlySky, que também fechou as portas. Eu não vi algo parecido entre os pagãos. Alguns permanecem no Patheos, o Pagan Square deixou de ser interessante e restou o Wild Hunt.

Erick Dupree, depois de sair do Patheos, foi vender seu monoteísmo diânico no Wild Hunt.
Ele começa errado no título do artigo.

“Tudo começou no amor.”

Amor é um sentimento e uma palavra. Nós falamos muito, mas praticamos pouco.

Continuando.

“Em seu livro inovador The Spiral Dance , Starhawk conta a história da Deusa Estelar, que, sozinha, incrível e completa dentro de si, viu seu reflexo no vasto abismo e se apaixonou por si mesma. Foi a partir desse amor que ela criou toda a existência. Do amor nasceu a humanidade e do seu amor tudo começou.”

Amar o seu reflexo é narcisismo, não é amor.
Contradição evidente. Sendo essa Deusa pré existente, então não começou com o amor.
Eu, como diletante do amor e aluno de pensadores melhores do que eu, posso dizer que não existe amor sem que exista o oposto, mas não antagônico.
A teologia diânica não se sustenta. Que reflexo o abismo pode produzir? Não é o abismo parte dessa mesma Deusa solitária? Não é o reflexo uma imagem, uma parte, dela mesma? Amar a si mesmo é egoísmo. Sem a existência do outro, do diferente, do oposto, nada pode ser criado ou gerado.

Continuando.

“Remove-se um “Deus” onipresente e uma práxis de pecado, redenção e perdão, e os substitui pela permissão para encontrar significado em um amor generativo, sem gênero e abrangente.”

Não existe diferença entre um Deus e uma Deusa onipresente. Onde tem algo absoluto, reina a tirania, a ditadura. Fica evidente que o conceito de Deus de Erick é o mesmo do cristão, o mesmo das religiões abraâmicas. Pior, ele cometeu o mesmo erro de confundir sexo com gênero.

Eu devo lembrar que o Deus Cristão não é o nosso Deus. Nós não podemos nem iremos fechar essas feridas transformando a Deusa em uma inversão travestida do Deus Cristão.

A Deusa é o Ventre e o Túmulo, Ela é o Campo para ser arado. O Deus é a Lança e o Arado, ele é o Semeador. Sem o Hiero Gamos, não existiria o universo, a vida e a humanidade.

Esta é uma falha das chamadas “religiões da Deusa”, sobretudo de suas vertentes mais feministas ao ponto de serem misândricas. A Deusa é incapaz de dar, receber, inspirar amor se negamos a Ela sua sexualidade, sua sensualidade, sua feminilidade. Ao omitir, negar e diminuir a importância do Deus, ao tornar a Deusa uma Santa Ameba, nós estamos negando a sacralidade do desejo, do prazer, do corpo, do sexo e do amor. Ao negar que a Deusa precisa de um Consorte nós tornamos o sagrado feminino mais uma triste imitação do ascetismo cristão. Como pode haver amor?

Se a Deusa é antiga e amplamente presente em diversas culturas, o Deus também o é. Na antiguidade, havia sociedades matriarcais, patriarcais, sedentárias, nômades, caçadoras-coletoras, agrário-pecuaristas. Culturas diferentes, crenças diferentes, Deuses diferentes. Assim como a Deusa-Mãe, a Deusa-Serpente, a Deusa Terra, é uma constante, o Deus Pai, o Deus Touro, o Deus Céu é igualmente constante, portanto são contemporâneos.

A união do Deus com a Deusa era tão importante que sobreviveu ao aculturamento cristão até os dias de hoje, custa entender porque exatamente no Paganismo Moderno, queiram fazer o mesmo que as religiões abraâmicas fizeram, divorciando o Deus da Deusa. Nós sofremos com as consequências desse divórcio.

Sem a Deusa, o Deus se torna violento, ciumento, vingativo.

Sem o Deus, a Deusa se torna frígida, histérica, rancorosa.

Sem o Deus, quem irá arar a terra? Sem o Deus, quem irá semear a semente? Sem o Deus, quem irá ceifar o trigo? Sem o Deus, quem irá nos conduzir para dentro do ventre da terra? Sem o Deus, quem irá colocar o cetro no trono? Sem o Deus, a Deusa não pode ser coroada e o trono fica vazio.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Filósofas da antiguidade

Autora: Margarita Rodrigues.

Primeiro, vêm a beleza, a atração física e o desejo sexual. E, se tudo for além das aparências, talvez você se encontre subindo a Escada de Diotima.

Sabemos sobre ela graças a Sócrates (470 a.C. - 399 a.C.). Em uma obra de Platão (428/427 a.C. - 348/347 a.C.), ele recorda as lições que aprendeu daquela mulher "muito sábia".

Em um vídeo de animação da BBC, o filósofo britânico Nigel Warburton explica o que é a fascinante escada.

Segundo Sócrates, Diotima dizia que "o desejo pelo corpo" de uma pessoa que consideramos bonita é "apenas o primeiro degrau de uma escada" que nos leva a valorizar "a forma da beleza".

Ele é um meio para o "fim superior" de apreciar a ideia abstrata da beleza, segundo Warburton.

Diotima acreditava que "para aprender sobre a beleza, é preciso reconhecer, em primeiro lugar, a beleza física do amante desejado". E, se você for racional, irá também admirar a beleza física de outras pessoas.

Subimos então ao degrau seguinte, para "observar a beleza que fica além das aparências, a beleza da sabedoria e do conhecimento, a beleza de mentes belas, mesmo aquelas que residem em corpos que não são particularmente bonitos".

O último degrau é conseguir "reconhecer a forma da própria beleza, a noção abstrata, pura, geral da beleza". Nela, também estão presentes as "qualidades morais da bondade".

Desta forma, Diotima acreditava que, se você ficar encantado com o físico de uma pessoa, você estará subindo o primeiro degrau de uma escada que pode levar você "a apreciar, de forma mais intelectual, a beleza universal".

Diotima é uma dentre quatro figuras femininas de destaque na filosofia grega que merecem ser apresentadas.

Diotima e o amor

Mariana Gardella é doutora em filosofia e professora da Universidade de Buenos Aires, na Argentina. Ela é a autora do livro Las Griegas: Poetas, Oradoras y Filósofas ("As gregas: poetas, oradoras e filósofas", em tradução livre).

"É verdade que existem poucas evidências sobre as filósofas gregas, mas isso não costuma ser impeditivo quando estudamos certos filósofos gregos sobre os quais também não temos muitas informações", explicou ela à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Para ela, "sempre se lança um manto de dúvida sobre as filósofas que, às vezes, acaba sendo um pouco excessivo – e os estudiosos observam os testemunhos com profundo ceticismo".

Seu livro abordou o tema do ponto de vista contrário: acreditar um pouco mais nos poucos testemunhos e fontes existentes. Mas ela adverte que Diotima é uma figura complicada: "existem muitas dúvidas se ela realmente existiu".

A obra de Platão na qual Sócrates apresentou os ensinamentos de Diotima é O Banquete. O texto em que ela aparece como personagem é dedicado ao eros, ao amor.

"E, na vez de Sócrates falar sobre o amor, ele diz que irá mencionar o discurso que ouviu de Diotima, que é especialista em assuntos eróticos", prossegue a professora.

"Sócrates também afirma que ela é sacerdotisa da cidade de Mantineia e, além de conhecer os assuntos do desejo e ter sido sua professora, ela ofereceu sacrifícios aos deuses para retardar a chegada de uma peste."

De fato, na obra de Platão, Sócrates afirma: "Tudo o que sei sobre o amor, devo a ela."

Em um trecho do diálogo entre ambos, Diotima faz uma pergunta sobre o amor e Sócrates responde que, se ele soubesse a resposta, "não admiraria sua sabedoria, nem procuraria você para aprender essas verdades".

Mas voltemos às dúvidas. Martini Fisher é historiadora e escritora australiana, autora do artigo Diotima and the Philosophy of Love ("Diotima e a filosofia do amor", em tradução livre).

No artigo, ela defende que os eruditos da Alta Idade Média e da Antiguidade nunca questionaram a existência de Diotima, que teria vivido no século 5 a.C.

"Os primeiros textos sobre Diotima também demonstram que ela era respeitada por suas habilidades e sua posição na sociedade", explica Fisher. "Por exemplo, a comédia O Eunuco, de Luciano, escrita no século 2 d.C., começa mencionando Diotima, Targélia e Aspásia, como prova de que houve mulheres filósofas."

Em um livro emblemático sobre o tema, Historia Mulierium Philosopharum ("A história das mulheres filósofas", em tradução livre), de 1690, Giles Ménage também não coloca em dúvida a existência de Diotima.

Mas pesquisadores posteriores, como o filósofo americano Allan Bloom (1930-1992), acreditam que Diotima não tenha existido. Chegou-se a cogitar a possibilidade de que ela fosse o reflexo de outras mulheres da época.

A filósofa Zoi Aliozi, mencionada pelo escritor britânico Will Buckingham, afirma que, seja ela "fictícia ou não, sua vez teve poderosa influência nos argumentos de Sócrates e, portanto, na história da filosofia como a conhecemos".

Por outro lado, o Museu do Brooklyn, nos Estados Unidos, destaca, em um breve texto sobre Diotima, que "em O Banquete, praticamente se atribui a ela a invenção do método socrático de perguntas e respostas".

"Contrariando os argumentos de que Diotima seria uma criação literária que serviu de porta-voz a Platão, acadêmicas feministas observaram, nas suas palavras, uma visão 'feminina' de uma ética do cuidado que a diferencia dos seus contemporâneos masculinos", conclui o texto do museu.

Mas, para Gardella, o importante é "dar a ela o devido valor".

"Não se sabe ao certo se as coisas foram assim, mas este não pode ser um impedimento para que se faça um esforço de contar uma nova versão da história da filosofia, diferente da canônica, incluindo as vozes dessas mulheres, reais e de historicidade duvidosa, que nos permitem entender como elas eram observadas e representadas."

Temistocleia, professora de Pitágoras
No século 6 a.C., surgiu uma figura que temos certeza de que existiu.

O importante historiador grego Diógenes Laércio (180-240) nos conta sobre Temistocleia, embora o filósofo Porfírio (c. 234 - 304/309), no livro A Vida de Pitágoras, refira-se a ela como Aristocleia.

Seja qual for o seu nome, o fato é que os dois escritores destacam que ela foi professora de Pitágoras (571/570 a.C. - 500/490 a.C.) e ensinou a ele as doutrinas éticas.

Acredita-se que ela tenha sido sacerdotisa, ligada ao culto do deus Apolo.

"A biografia de Pitágoras é enriquecida pela presença de muitas filósofas", explica Gardella. "Temistocleia é sua professora, Teano é sua esposa ou discípula e ele tem três filhas filósofas: Myia, Damo e Arignote."

De fato, Pitágoras foi o primeiro filósofo a aceitar mulheres discípulas. Ele chegou a ser chamado de feminista.

Há quem acredite que a influência de Temistocleia sobre Pitágoras tenha sido um dos motivos que levaram o matemático a permitir professoras na sua escola.

"As mulheres não são incorporadas aos grupos pitagóricos como esposas, mas como filósofas", segundo Gardella. "Elas aprendem as doutrinas de Pitágoras e as ensinam, elas transmitem esse conhecimento. Este é o caso típico de Temistocleia."

Hipárquia, a cínica
A jovem Hipárquia (c. 350 a.C. - c. 280 a.C.) pertencia a uma família aristocrática. Ela tinha muitos pretendentes ricos, nobres e belos, mas recusou a todos.

Ela havia se apaixonado perdidamente por um homem mais velho, o filósofo Crates de Tebas (c.365 a.C. - c.285 a.C.). E disse aos seus pais que, se não a deixassem se casar com ele, ela colocaria fim à própria vida.

"Seus pais pedem a Crates que a convença a não se casar com ele", conta a pesquisadora.

Ele tentou atender ao pedido de diversas formas, até que, um dia, "ele tira a roupa em frente a ela e diz: 'este é o noivo e estes são meus bens. Se você quiser viver comigo, precisa viver como eu vivo.'"

Era o século 4 a.C. e Crates era cínico, discípulo de Diógenes de Sinope (412 a.C. - 323 a.C.), também conhecido como Diógenes, o Cínico – ou "o Cão". E Hipárquia renunciou a todas as suas riquezas e comodidades para se casar com ele.

"O matrimônio é mencionado nas fontes e é chamado de 'casamento de cães'", prossegue Gardella. "O cão é um símbolo muito importante para o cinismo porque os cínicos se propunham a viver como cães."

"Cínico", em grego, significa "canino", que se comporta como um cão.

"A ideia era viver com simplicidade, com o mínimo possível, de forma independente, libertar-se do material, voltar para a natureza, sem ter vergonha", explica a professora. "Um dos principais objetivos dos cínicos era questionar as normas e valores socioculturais que nos tornam escravos."

Essa independência não se referia apenas ao material, mas aos desejos, como o desejo da honra, de ocupar cargos políticos e de ter prestígio.

Diferentemente de muitas mulheres da sua época, Hipárquia não ficou dentro de casa. Ela se dedicou a viver como cínica.

"As mulheres na Grécia costumavam se vestir com uma túnica e um manto, o que deixava entrever muito pouco do corpo", segundo Gardella.

"Mas Hipárquia usava o mesmo que todos os cínicos, apenas um manto duplo, sem túnica. Ela ficava seminua, como Crates, o que era muito escandaloso."

Em uma ocasião, Hipárquia entrou em um banquete, um espaço tradicionalmente destinado à socialização dos homens. Embora houvesse mulheres no local, elas se dedicavam à dança e à música.

Nessa reunião, Hipárquia teve uma discussão com o filósofo cirenaico Teodoro, o Ateu (340 a.C. - 250 a.C.). Ela apresentou a ele um sofisma, como conta o historiador Diógenes Laércio:

"O que não puder ser considerado 'prática de injustiça', quando feito por Teodoro, também não seria chamado de 'prática de injustiça', se o fizesse Hipárquia. Quando Teodoro bate em si próprio, não comete uma injustiça; então, Hipárquia também não cometerá injustiça se bater em Teodoro."

O filósofo não respondeu. Ele preferiu levantar o manto e revelar seu corpo nu, o que não a perturbou.

"Esta é 'a que deixou a lançadeira junto ao tear'?", perguntou Teodoro, em referência ao papel tradicional de tecer, exercido por muitas mulheres.

"Sou eu, Teodoro", respondeu Hipárquia. "Você acha que tomei uma decisão errada ao usar para minha educação o tempo que iria perder no tear?"

Gardella defende que este testemunho é importante porque "é a primeira reivindicação pela educação das mulheres na boca de Hipárquia: não vou perder meu tempo tecendo, não fiz mal em abandonar o tear, vou me dedicar à minha educação."

Hipárquia escreveu várias obras, mas só chegaram até nós os títulos, como Hipóteses Filosóficas e Perguntas para Teodoro.

Ela viveu no período helenístico, quando as mulheres tinham mais acesso à educação. Por isso, não estranha que ela soubesse escrever, segundo a professora.

"Diógenes elogia a grande cultura filosófica e a elegância de raciocínio de Hipárquia, comparando-a a Platão", destacam Giulio de Martino e Marina Bruzzese, no livro Las Filósofas: Las Mujeres Protagonistas en la Historia del Pensamiento ("As filósofas: as mulheres protagonistas na história do pensamento", em tradução livre).

Aretê e o hedonismo

Também no século 4 a.C., encontramos uma filósofa chamada Aretê, filha de Aristipo de Cirene (435 a.C. - 356 a.C.), discípulo direto de Sócrates e fundador da escola cirenaica.

"Trata-se de uma escola hedonista que defende que o propósito da ação não é alcançar a felicidade, como propunham muitos filósofos gregos, mas conseguir o prazer", explica Mariana Gardella.

"Existem testemunhos de que Aretê assumiu a escola fundada pelo pai, escreveu uma grande quantidade de obras e foi professora de muitos discípulos."

"Aretê desempenha um papel muito importante na transmissão das doutrinas cirenaicas de geração em geração", destaca a professora, "mas não temos nenhum testemunho que transcreva palavras que ela tenha dito, nem trechos dos seus tratados."

Os cirenaicos acreditavam que nossas ações precisam levar a conseguir o prazer e evitar a dor.

"Mas não se trata de satisfazer qualquer tipo de prazer, nem de ir atrás de qualquer prazer, mas, sim, poder fazê-lo com certa medida, para que essa busca não nos destrua", segundo Gardella.

"Aretê tinha legitimidade entre os cirenaicos e era reconhecida por todos, não só por ser filha e discípula de Aristipo, mas por ser líder da escola e professora de outros cirenaicos."

"E um dado curioso é que não existem testemunhos de outras mulheres cirenaicas. Aretê é a única filósofa cirenaica de que temos conhecimento."

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72042n9g15o.amp

segunda-feira, 15 de abril de 2024

A orgia do padre

Um padre polonês, identificado como Tomasz Z, foi condenado a 18 meses de prisão por crimes sexuais e envolvimento com drogas. Ele foi acusado após um incidente durante uma orgia, na qual um garoto de programa desmaiou devido ao uso excessivo de pílulas para disfunção erétil.

A orgia ocorreu entre os dias 30 e 31 de agosto de 2023 em um prédio pertencente à paróquia da Santíssima Virgem Maria dos Anjos, em Dabrowa Gornicza. Após o desmaio do profissional do sexo, os frequentadores impediram a entrada dos paramédicos, exigindo a intervenção da polícia para prestar socorro.

Durante o julgamento, Tomasz Z contestou o número de padres presentes na reunião e afirmou que “vale a pena ler qual é a definição de orgia”. Ele foi condenado por crimes sexuais, fornecimento de drogas e por não prestar assistência ao garoto de programa desmaiado.

O caso gerou um grande escândalo envolvendo as dioceses de Sosnowiec e Dabrowa Gornicza. Embora não estivesse entre os acusados, o bispo Grzegorz Kaszak, que administrava a unidade de Sosnowiec, renunciou ao cargo. Kaszak abriu uma investigação que concluiu pela demissão de Tomasz Z de todas as funções clerigais.

Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/padre-polones-organiza-orgia-e-e-condenado-a-18-meses-de-prisao/

Nota: o padre não foi preso por causa da orgia. Mas por ter dado uma dose excessiva de medicamentos e por ter impedido o socorro do profissional do sexo. Quem me dera que todas as igrejas fossem assim 🤭😏.

Os corpos endossexo

Autor: Amiel Modesto Vieira.

Desde meados dos anos 2010 o movimento intersexo tem atuado em terras brasileiras. Um dos vários desafios que temos enfrentado para nos fazermos reconhecidos, e conhecidos, é retirar a ideia da sociedade brasileira de que somos hermafroditas.

Essa ideia remonta aos tempos gregos e à sua mitologia que fazia parte da sociedade daquela época. De forma bem resumida, uma ninfa apaixonada por hermafrodito fundiu seu corpo com o dele, e daí a ideia que carregamos até os dias de hoje, de que o intersexo é um corpo com dois sexos dentro dele.

A intersexualidade, mais do que isso na realidade, contempla vários estados de uma condição biológica que até onde se tem conhecimento são mais de 40. Isso quer dizer que resumir estes estados a um corpo com dois sexos seria reduzir demais suas manifestações.

Assim, pode-se dizer que retirar do senso comum esse resumo e mito é uma tarefa hercúlea. Ao mesmo tempo, pessoas no movimento acham que deveríamos facilitar a comunicação com o público e falar menos “biologiquês”, ou “mediquês”. Confesso que esse é um dos mais importantes dos nossos desafios.

Ao mesmo tempo, por nossa condição estar ligada aos hormônios e às características sexuais do corpo humano, creio que desatrelar nossa biologia do mitológico é urgente. Ainda mais se lembrarmos que, por causa disso, no passado já despertamos a curiosidade e o desejo sexual pelo exótico. Porém, precisamos reiterar que não somos itens de exibição, mas sim parte da evolução humana, e não uma aberração ou anomalia.

A sociedade em que vivemos deseja regular tudo, ela normatiza nossa vida e nossa sexualidade. O rosa e o azul são parte da regulação que parece acontecer só por fora. Utilizamos o prefixo “endo” para ressaltar que esta regulação se apresenta até nas taxas hormonais ou nos nossos cromossomos.

Para melhor entendimento, é preciso saber que na endonormatividade (Nowakoski; Sumerau; Lampe, 2020) há um número padrão para as taxas hormonais estarem no lugar, e que os nossos cromossomos só podem ser xx ou xy. Assim, outras formas de se comportarem, tais como xyy, xxy ou x0 estariam fora desse padrão. Desta maneira, essa regulação se importaria não somente com o externo do nosso corpo, mas também com o que está dentro.

Essas padronizações estão ligadas às características sexuais do corpo humano. Nos corpos endossexo (Carpenter et al, 2022) , ou seja, não-intersexo, estas características são observadas pelos médicos, como por exemplo os genitais, que devem estar no tamanho correto, e se suas taxas hormonais e cromossomos nos exames aparecerem como o esperado. E no que diz respeito à sexualidade, espera-se que no futuro cumpram a heterossexualidade, que estejam preparados para casar e se reproduzir.

A endonorma, ao ver corpos que apresentam diferentes estados intersexo, trata logo de utilizar o “apagador cirurgiador”. Este corpo alterado para ser tal qual o endossexo nunca deixará de ser intersexo, pois apesar de se mudar a forma original, os corpos que tentaram mudá-lo nunca o verão como endossexo, mas sim como o corpo intersexo que chegou.

Apesar de buscar fazer com que o leitor entenda o mundo do qual falo, que a seu ver pode parecer estranho e longe da imaginação, ele está todos os dias ao seu lado: no metrô, no ônibus, no trem, no elevador, no vizinho do apartamento, ou ainda na casa do outro lado. Talvez passemos desapercebidos ou até despertemos uma certa estranheza a seus olhos, e por mais que a endonorma queira nos eliminar, somos muitos, e MUITO resistentes.

Fonte: https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/3/27/por-que-falamos-endonormatividade-por-amiel-modesto-vieira-156391.html